Texto Crítico _ Catálogo

Texto publicado no Catalogo da II Mostra Programa de Exposições CCSP 2018

Baixar catálogo (link)

O debate acerca do popular é recorrente nas análises sobre cultura, sociedade, economia e política no Brasil e pode ser condensado em duas vertentes conceituais. Na primeira, o conhecimento e a cultura populares, engessado em uma ideia de tradição inconciliável com o nosso processo de modernização, são compreendidos uma alternativa para compreender a realidade brasileira. Esse entendimento, na esfera político-estatal, teve como ponto culminante a Missão de Pesquisas Folclóricas coordenada por Mario de Andrade em 1938. Na segunda, reconciliado com o processo de modernização tecnológica e econômica, o popular passa a ser percebido como um caminho para transformar a realidade brasileira. Na esfera político-estatal, esse pensamento foi condensado na criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (1959). Com sede em Recife, concebida pelo economista Celso Furtado, a Sudene teve como principal estratégia de desenvolvimento econômico para a região Nordeste a integração entre desenvolvimento, industrialização e os saberes populares. Tanto na primeira, como na segunda vertente conceitual, subjaz uma noção de povo como incapaz de existir enquanto sujeito político, e que, enquanto classe desfavorecida, só poderia ser incluída na esfera política a partir da intermediação ora do intelectual, ora do Estado.

No final da década de 1970, com o apoio da Sudene, a arquiteta pernambucana Neide Mota Azevedo coordenou a pesquisa Técnicas construtivas tradicionais do Nordeste (1978) [1], além do estudo sobre a viabilidade de se incorporar métodos construtivos populares nas políticas habitacionais da região, também foi produzida uma documentação iconográfica das soluções construtivas, objetos, mobiliários e utensílios domésticos inventariados ao longo da pesquisa[2].

Quarenta anos depois, Carla Lombardo e  Ж, identificaram e elegeram em fotografias desse arquivo uma forma comum que, para os artistas, sintetizariam o pensamento vernacular: as uniões. Compreendida enquanto “princípios dinâmicos”, como “sínteses disjuntivas do encontro entre a situação (material, econômica, etc) e a necessidade (moradia, utilitários, etc.)” – essa forma comum foi recuperada do léxico da arquitetura popular nordestina e reposicionada no léxico político, servindo de base para a elaboração do vocabulário político orientador da proposta aqui apresentada e condensada nas uniões: Todos por um; Apoio Mútuo: suporta e gira; Sustenta e passa: o dentro é o fora; Diferença: potência.

Ao recuperar soluções construtivas oriundas de um saber comum, expressão da experiência do pensamento e das tentativas do povo em produzir alternativas às formas de vida que lhes são impostas, Lombardo e Pinheiro tanto ativam uma memória como atualizam um debate. Ao fazerem coincidir o popular, posicionado enquanto um corpo político, com o comum[3], compreendido como uma alternativa política à razão neoliberal e ao poder soberano (Estado), os artistas vislumbraram na “inteligência da situação condensada nessas soluções materiais” uma forma de vida política[4] orientada pelo comum, nas palavras dos artistas:

A vida na «precariedade radical» (Lina Bo Bardi) como potência e plenitude é o fio condutor dessa «União do Povo». Revisitar suas formas, reconectar-se com suas forças é ir ao encontro do comum, da comunidade possibilitada pelos espaços e usos, é re-imaginar os arranjos da vida, é coreografar a condição de possibilidade para um “devir- juntos”

A União do Povo, como uma deliberada tentativa de materializar outra possibilidade da forma do político e do político da forma, se estrutura em três núcleos-convites para com-sentir, com-viver e com-partilhar a potência do comum:

O Mnemosyne funciona como um dispositivo de ativação da memória. Trazem à tona as fotografias (as uniões) do arquivo de Neide Mota, as quais, por meio das analogias com os diagramas de forças e das coreografias, tem sua potência atualizadas e perenizadas.

Os Diagrama para movimentos abre a possibilidade para que as coreografias resultantes da associação das quatro uniões com outros gestos e sistemas de pensamentos coletivos possam ser experienciadas, a um só tempo, como processos corpóreos coletivos e como práticas performativas dos espaços onde ocorrem.

Por fim, o Concurso de dança, uma convocatória pública para a criação de uma “coreografia/movimento” que se “relacione/questione/dance” uma “União do Povo”. O tema escolhido, Diferença: Potência, decorre de uma das solução estruturais mais utilizadas nas construções populares: a mistura de vários materiais, a potência da união da diferença.

Vamos?

Fabricia Jordão

Fabricia Jordão é pesquisadora, crítica e curadora independente. Faz parte do grupo de críticos do CCSP, é mestre e doutora em História, Crítica e Teoria da Arte pela ECA-USP. Desde 2010 investiga as relações entre as artes visuais, a política e o Estado ao longo da ditadura e da redemocratização brasileira.

[1] A arquiteta Lina Bo Bardi também desenvolveu trabalhos em consonância com essa vertente do nosso projeto desenvolvimentista. Bardi que viveu em Salvador no mesmo momento em que era implantada a SUDENE, entre 1958-1964, inclusive foi interlocutora de Celso Furtado. A arquiteta projetou um centro de documentação de arte popular – o Museu de Arte Popular da Bahia – e um centro de estudos técnicos sobre o Nordeste – o Centro de Estudos e Trabalho Artesanal – e a Escola de Desenho Industrial e Artesanato, que a partir do artesanato e do conhecimento popular, buscaria desenvolver o desenho industrial brasileiro.

[2] Neide Mota Azevedo viabilizou essa pesquisa por meio de convenio entre o Curso de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, onde era professora do Centro de Habitação, e a SUDENE. O estudo foi desenvolvido em co-autoria com a arquiteta Liana Mesquita e o registro fotográfico ficou a cargo da também arquiteta Ivone da Silva Salsa.

[3] Sobre o comum ver Pierre Dardot, Christian Laval, Commun, Essai sur la revolution au 21eme siecle, Paris: Éditions La Découverte, 2014.

[4] A esse respeito conferir AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.